Por volta de 1975, eu fiz amizade com um grupo de
rapazes, pouco mais velhos do que eu. Dentre estes novos amigos havia um grupo
de irmãos de uma família bastante numerosa da cidade. Somente dos que andavam
juntos, eram quatro: Alcides, Chacrinha, Getulio e Nêgo. Getúlio o mais
arredio, havia passado, nessa época, um período em uma clínica de saúde mental,
por conta de certos abusos e encrenca com a lei. Tendo retornado disposto a se
enquadrar na sociedade novamente, afastou-se um pouco dos demais, que eram uma
turminha da pesada. Nada muito sério, mas, pra quem pretendia se ajustar, não
era a companhia ideal.
Getúlio adquiriu um ciclomotor muito em moda na
época, era um veículo que ficava entre uma motocicleta e uma bicicleta, alguns
chamavam de "bicicleta a motor", era um bom veículo para se deslocar
nas cidades, uma motoneta da marca "Motovi".
Uma tarde de sábado de céu nublado e chuvisqueiro
de inverno, passados diversos dias de chuvas persistentes no estado, Alcides e
eu nos encontramos no centro da cidade, perambulamos, entramos em alguns bares,
jogamos sinuca, conversamos e chegamos à conclusão de que deveríamos fazer
alguma coisa mais movimentada para passar o dia. Alcides relatou que Getúlio
tinha ido a uma cidade vizinha, dista cerca de 30 km. para visitar uma tia e de
que ficaria o resto do final de semana por lá. Como o tempo era instável,
Getúlio resolveu ir no ônibus da linha. Resolvemos "tomar emprestada"
a Motovi do irmão para vadiar pelas redondezas, o que fizemos, mesmo sabendo
que o tempo estava ruim.
Não havia muitas opções de lugares para ir,
rumamos para a orla do lago, na praia da Alegria, mas, quando estávamos
chegando perto, desabou um temporal muito forte, exigindo que nos abrigássemos
em algum lugar, o que fizemos. Paramos em um bar que existia na esquina das
ruas Inácio de Quadros com a rua São Geraldo, a rua principal que corta a
cidade, levando em direção ao tal município vizinho. A chuva não dava tréguas e
nos entretemos tomando vinho e jogando sinuca. Numa dessas, Alcides veio
desesperado dizendo que vira o Getúlio passar no ônibus, voltando da visita à
tia, por certo ele não a encontrou e estava retornando, simples, uma viagem de
pouco mais de meia hora.
Precisávamos de qualquer maneira, devolver o
ciclomotor ã casa dos irmãos antes que Getúlio lá chegasse. A chuva diminuiu
para um chuvisqueiro bem fino, uma garoa, permitindo que atalhando por dentro
do Bairro, subindo à íngreme Inácio de Quadros, com um pouco de sorte
chegaríamos antes do irmão, que faria uma longa volta, teria que descer nas
imediações da casa da família e empreender uma caminhada de várias quadras para
chegar.
Embarcamos no ciclomotor, alinhamos e em alta
aceleração, nos dirigimos rua à cima, esperando alguma dificuldade, pois, a rua
não era pavimentada, e o lamaçal era muito grande, também sulcos feitos pela
chuva tornavam a subida até mesmo perigosa. No meio da lombada, o ciclomotor
não deu vencimento e tivemos que descer e empurrar. O chão escorregadio fazia
com que não pudéssemos ter apoio para empurrar o veículo e por diversas vezes
caímos na lama vermelha, sujando roupas e o próprio ciclomotor. A essa altura
estava tudo enlameado, as rodas da motinha estavam grossas de barro. Depois de
muito tentar e com a ajuda de um popular e uma corda, vencemos a lombada.
Atravessamos o bairro todo, chegando na casa dos irmãos. Conferido que ele não
havia chegado, começamos a lavar e limpar o ciclomotor, numa tarefa difícil,
pois, a lama grudava em tudo e não podia ficar nenhum vestígio.
Já se passara mais de uma hora desde que chegamos
e nem sinal do Getulio e, nós estávamos imundos, as roupas de passeio pareciam saídas
de um filme de guerra, mas, a Motovi estava perfeita, fizemos um bom serviço.
Fomos nos lavar, eu peguei roupas do Alcides para vestir e aguardar o retorno
do mano, para ver o que se sucederia e de como manteríamos a farsa. Para isso
nos munimos de um bom chimarrão e ficamos aguardando, o sol ia se pondo e a
chuva persistia, nesse momento já estávamos rindo da situação, Getulio nada
perceberia.
A noite chegou, Getulio não apareceu, chegamos à
conclusão de que Alcides havia se enganado, o rapaz que ele vira na janela do
ônibus não era o irmão, por certo era alguém parecido, avistado de longe num
dia nublado e chuvoso a uma distância razoável.
Enfim, depois de proferirmos alguns palavrões, a
maioria dirigida a nos mesmos, já perdida à tarde de sábado nos concentramos em
achar o que fazer no resto da noite que se iniciava, com mais uma história em
nossa bagagem. História esta que ficou guardada até esta publicação,
infelizmente Alcides e Getúlio não estão mais vivos, também nos anos seguintes
ao ocorrido, nos distanciamos e nunca mais nos vimos. Passados quase cinqüenta
anos, resolvi escrever a respeito.