“Os anos mudam as nossas opiniões, da mesma forma que alteram a nossa fisionomia.”Marquês de Maricá
Naqueles
dias, as tardes eram tão longas que parecia que o dia nunca ia acabar, mas
acabava, pois ansiava pela chegada da noite e os seriados e filmes da
televisão.
Marú e eu tínhamos uma amizade imensa, na qual
compartilhávamos todas as atividades do dia a dia: estudo, brincadeiras,
bicicletas e todas as invencionices que a juventude permite. Em muitas
atividades, sobretudo aquelas mais perigosas, tínhamos a consultoria e
assistência de seu pai, que nos ajudava a fazer brinquedos, ferramentas e nos
indicava lugares onde achar materiais e livros nos quais pesquisar. Não passava
um dia sequer sem que criássemos alguma coisa, nem que fosse um projeto, um
desenho e sobre ele gastávamos horas a fio discutindo, melhorando e divagando
sobre as possibilidades do invento, ou brincadeira. Nos finais de tarde,
cansados nos sentávamos a sombra de um velho e carcomido cinamomo no pátio, ou
então em um velho sofá na garagem mergulhávamos na leitura das inúmeras
enciclopédias do seu pai, revistas e livros que em volume crescente iam saindo
de dentro da casa e ocupando um grande cômodo da garagem, muito iluminado e
aquecido pelo sol, ideal para os dias de inverno. Foi num dia desses, bem
ensolarado que observamos através das frestas das tábuas brutas da parede, que
as réstias de sol projetadas no assoalho se movimentavam à medida que as horas
iam passando, seguindo sempre na direção oposta a trajetória que o sol fazia lá
fora. Tivemos a idéia de fazer marcas no assoalho, primeiro com lápis, depois
com tinta. Escolhemos um dos fachos de luz, o que mais tempo alcançava e de
hora em hora em traçávamos uma linha longitudinal na linha divisória entre a
luz e a sombra. Depois a cada dia íamos subdividindo essas marcas, em meia
hora, um quarto de hora e pequenas divisões a cada minuto. Essas últimas se
tornaram mais imprecisas, devido a minúcia que deveriam ser traçadas. Depois
percebemos que através desse “relógio” tosco, podíamos prever com exatidão o
soar de uma sirene a vapor de uma fábrica perto e também à hora em que a mãe de
Marú nos chamava para o lanche da tarde, era infalível e passamos a viver quase
que exclusivamente de sincronizar acontecimentos temporais diários com o nosso
marcador de tempo. Dessa forma passamos todo o período das férias escolares,
sendo que as vezes o pai de Marú passava para perguntar as horas e “acertar”
seu velho relógio de pulso, um Tissot, Suíço de mais de trinta anos, imagino
que aquele relógio precisasse muito do nosso para andar na linha. Por essa
época notamos que com o passar das estações, as marcações que tínhamos feito
não se alinhavam tão justamente com as réstias de luz e logo percebemos que a
posição do sol devido a rotação da terra ia alterando nossas marcas, as horas
já não eram indicadas com a precisão das primeiras semanas, e logo que o outono
chegou as horas estavam completamente fora de sincronia, precisamos atualizar
os riscos, o que gerava uma nova série de marcas sobrepostas que confundiam a
aferição. Quando as férias escolares de inverno chegaram, nosso envolvimento
com o assunto relógio de sol tomava grande parte de nossas conversas e em
determinado momento chegamos a conclusão de que precisávamos de um relógio que
levasse em consideração as estações do ano e as posições alternadas que o sol
ia tomando ao longo delas. Estávamos crescendo e amadurecendo nossa maneira de
perceber as coisas, o relógio de sol, vejo agora com a distância dos anos,
permitia até mesmo esse tipo de aferição, pois na medida em que o experimento
cobrava maior aprofundamento e resolução dos problemas, éramos impulsionados a
resolvê-los e dessa forma evoluíamos juntamente com nossa criação.
Os dias passavam com peculiar lentidão quando não nos
reuníamos para tratar de nosso relógio, e as tarefas mais corriqueiras do dia
se tornavam um suplício, quando não relacionadas a isso. Por esse período Marú
começou a enfrentar problemas familiares, devido as suas faltas freqüentes as
aulas. O colégio parecia não lhe interessar mais, visto que passava as manhas
inteiras em um “autorama”, um pequeno estabelecimento que oferecia uma enorme
pista de corrida com ótimos carrinhos elétricos de fórmula 1. Nosso projeto do
relógio do sol, também estava indo de forma mais lenta, mas sempre que eu ia na
casa de Marú, fazíamos desenhos e projetávamos alguns designs possíveis para o
projeto. Essas reuniões passaram a não ser tão agradáveis, pois os seus pais estavam
reprovando o seu comportamento escolar e deixaram de incentivar o projeto do
relógio de sol. Até mesmo os convites freqüentes para almoços de domingo com
eles cessaram, eles estavam me olhando com outros olhos, talvez percebendo
alguma influência que eu tivesse nas escolhas de Marú. Não havia nenhum tipo de
influência que não as correlatas ao nosso projeto, pois eu era assíduo nas
aulas e muitas vezes reprovei Marú por seu comportamento. No verão que sucedeu
as férias de inverno daquele ano, nós começamos a nos afastar por diversos
motivos. Nossos outros interesses começaram a divergir de forma um tanto
vertiginosa, com Marú preferindo as saídas noturnas, que eu ainda não podia
acompanhar, já que era mais novo e eu tendendo a me envolver com as garotas da
minha faixa etária e com a curtição de discos de rock, que vinham de maneira
muito profunda influenciando meus amigos, incrivelmente Marú não embarcou nessa
viagem. No ano seguinte não mais nos falamos e Marú mudou de cidade, ficando
apenas a casa grande madeira onde moravam. Essa casa se preservou quase que da
mesma forma, habitada por diversas outras famílias por mais de quarenta anos,
vindo a ser demolida somente a pouco mais de cinco anos, época em que voltei a
fazer contato com Marú através das redes sociais, mas de forma diferente e mais
distante do que antigamente, nem sequer tocamos no assunto “relógio”, que antes
tão importante, agora apenas fazia parte da miríade de lembranças que nossa
memória regulamente regurgita conforme aprofundamos nossa nova interação.
Naqueles tempos da juventude e de nosso projeto de relógio de
sol, Marú e eu tínhamos escolhido uma grande pedra que existia no seu quintal,
grande mesmo, de cerca de um metro de altura e uns quatro de diâmetro aparente,
e havíamos esculpido com cinzel e marreta no seu topo, um grande círculo do
tamanho de um prato, que viria a ser uma das fases do nosso relógio de sol, e
que ficou inconcluso para sempre. Um grande sulco, profundo o suficiente para
perdurar enquanto a grande pedra durasse.
Quando fui trabalhar em uma construtora da cidade, soube que
o terreno onde era a casa de Marú foi adquirido e que lá seria construído um
grande prédio de apartamentos, tirei uma tarde e desci até o local. Tudo em
volta estava igual, as duas ruas da esquina, o colégio e o casario, tudo
igual, não ser pelo novo pavimento das
ruas, que agora era de asfalto, feito em
cima dos velhos e brilhantes paralelepípedos de outrora. O terreno estava
cercado por um grande tapume de obra, com o logo da empresa por toda a parte.
Acessei o portão principal, e de lá mesmo avistei a pedra, intacta, igual,
atravessando os anos e nossas vidas de forma indelével, inexorável como o
tempo. Me posicionei primeiramente, do lado oposto ao da cavidade onde havíamos
feito a escultura, tentando de alguma forma preterir aquele encontro, dizendo
para eu mesmo:
_Não, isso foi um sonho, não está lá...
Mas estava, um pouco diferente, mas estava, com liquens
ocultando parte do desenho tão simetricamente esculpido. Ouvi as risadas
daquele dia, senti o contato da brisa no rosto e vi o largo sorriso alvo de
Marú, seu cabelo preto crespo como uma bandeira tremulando no vento da
primavera e sua pele morena, saudável e viçosa a brilhar, com o suor escorrendo
pela testa. Lembrei do arroz branco de
dona Leda, sua mãe e do jeans novo que sua irmã desfilou um dia para nós. Vi o
carro da família na garagem e o cachorro Bobby pulando de um lado para o outro.
Senti até mesmo o calor daqueles dias de longas pedaladas e o cheiro das
revistas na estante da garagem. Eu vi a
vida a se derramar através dos anos e os caminhos que as vidas tomam. Bem como o
som dos pássaros no velho cinamomo e as risada grave e bem humorada do pai de
Marú. Quando dei por mim estava em lágrimas diante da pedra, absolutamente
comovido em saber, que o relógio de sol que projetamos funcionou, mesmo que de outra forma.
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