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Generalidades com Especificidade

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sábado, 3 de março de 2018

A Casa da Tia Iná & Outras Histórias


Das minhas lembranças de infância, a mais recorrente e aquela que mais tenho carinho é da casa da Tia Iná. Desde a primeira vez que fui levado por minha mãe em visita a minha querida tia fiquei muito impressionado, não só pela construção em si, mas pelo lugar todo muito bonito, que ficava na área rural da cidade, mas em uma localidade em que se podia chegar caminhado facilmente, desde o centro. Pelo que lembro havia duas maneiras de se chegar até a casa da minha tia: O normal e mais utilizado era pela estrada estadual, ainda de chão batido. Depois de alguns minutos de caminhada a cidade ia ficando para trás, as casas iam ficando rareadas até que só restava campo e estrada, logo após uma grande ponte de madeira andava mais um pouco e a esquerda havia uma porteira grande, dessas antigas no alambrado de arame, feita com três madeiras roliças como se fosse uma enorme goleira de campo de futebol, com as aberturas também em madeira, só que essas em madeira beneficiada com dobradiças grandes de ferro, dividida em duas partes para serem abertas quando passasse animais ou maquinas, e ao lado uma entrada menor de uso para as pessoas. Essa entrada era bastante peculiar, pois era feita também em madeira, e era uma catraca giratória em formato de cruz que permitia o ingresso de pessoas, mas barrava animais como cavalos e bois. Depois dessa entrada seguia-se por uma estradinha de chão no meio do capinzal alto, dois trilhos desenhados no chão pelo movimento freqüente das rodas de veículos. Esses dois trilhos faziam uma ligeira curva e depois se retificava em um ponto de onde na minha idade e altura já podia se avistar a casa. Uma linda casa grande de madeira em estilo simples e colonial, mas de uma beleza imensa, cercada por grandes pés de Hortência sempre floridos, que em contraste com o tom róseo da pintura da casa e o verde em torno, sempre me pareceu uma pintura em tela. Nesse ponto a estradinha quando eu ia com minha mãe eu sempre para ficar admirando a casa, minha mãe seguia a frente, depois parava meio brava e me chamava.
_Anda menino, não embroma!
Minha mãe interpretava aquela minha parada como timidez, ou um jeito de adiar nossa chegada até a casa da tia Iná. Alguns anos antes de minha mãe morrer tive a oportunidade de conversar sobre isso e pude lhe contar o verdadeiro motivo da minha parada estratégica, rimos muito quarenta e tantos anos depois daqueles tempos.
Um  outro modo de chegar até a casa da tia, esse mais perigoso e acidentado era ao chegar à ponte a que me referi anteriormente, era entrar a esquerda pulando o alambrado de arme e acessando a margem do arroio, que era na verdade um imenso canal escavado para levar água da lagoa para as plantações de arroz. Nas margens eram depositados a areia e terra escavadas do canal, que se tornavam amontoados ao longo deste, formando dunas que ressequidas pelo sol e pelo vento permitiam que se caminhasse sobre elas, num contínuo sobe-e-desce muito cansativo, mas que encurtava a distância de forma significativa. Quem optasse por esse caminhão chegava mais rápido, mas mais cansado. Minha mãe sempre me alertava do perigo de cair dentro do canal, que geralmente era de água baixa e cristalina, mas de uma altura bastante acentuada desde as dunas até o seu leito arenoso.  Outro perigo de se acessar a morada da tia Iná por esse ponto, é que se chegava pelos fundos da propriedade, onde ficava um enorme carneiro da família e que era muito bravo, ele ao avistar estranhos se precipitava em carreira desabalada na direção dos incautos e os acertava com cabeçadas que podiam causar ferimentos graves e contusões muito doloridas, esse animal era incontrolável e posteriormente deram um fim a ele. Sempre aconteciam coisas diferentes na casa da minha tia, tendo sido uma dessas coisas, uma que repercutiu por muitos anos. Foi quando se descobriu que eles  tinham no pátio diversas caixas com enxames de abelhas, que um dia se rebelaram e atacaram os animais da casa matando galinhas e acho que até porcos. Minha tia e minhas primas ficaram trancadas dentro de casa sem poder avisar os que estavam fora desse acontecimento, pois eles não poderiam voltar com os enxames a solta e atacando tudo, foi uma semana difícil e de aprendizado, pois as abelhas eram de uma espécie africanas muito selvagens e complicadas de serem domesticadas, picadas, muitas galinhas morreram, mas felizmente nenhuma pessoa foi atacada. Lá conheci também muitas pessoas que não eram familiares, mas que vieram a ser da família mais tarde, ou não. O namorado de minha prima mais velha, e que estava sempre por lá nas férias era o Franke, ele era muito simpático e moderno, gostava de trabalhar com hortaliças e estava sempre mexendo na terra. Uma tarde de chuva, numa semana que fiquei na casa de minha tia, Franke estava lendo uma revista enorme e colorida, me chamou a atenção uma fotografias de uma longa matéria onde haviam homens cabeludos e mulheres que se vestiam de forma muito esquisita, com adornos nos braços, colares e acessórios coloridos, Franke então me explicou que eram um pessoal dos estados unidos, que eram conhecidos como ”hippies”, que era uma espécie de moda e que em breve chegaria ao Brasil.
_Eles estão tomando conta do mundo, se espalhando por todos os lugares – Ele falou. Mas são adeptos da paz e gostam muito de música.
Fiquei em silencio ouvindo aquelas palavras que nunca mais esqueci. Franke era um cara legal, mas uma vez me enganou. Tínhamos ido ao centro da cidade, eu mais um primo, Franke e três primas: Sua namorada e as outras duas mais novas. Fomos ao cinema assistir um filme, não lembro o nome, na volta ele me disse para segurar uma garrafa, disse-me que era vinho e que me daria um gole quando chegássemos em casa, depois de muito caminhar com aquela pesada garrafa, cheirei uma  das mãos e percebi que o que tinha dentro dela era querosene para os lampiões, mas mesmo assim levei-a o resto do caminho, mas passei o resto da noite meio emburrado. Outra tarde chovia muito, o quarto dos rapazes da casa tinha uma porta para rua, para se entrar no quarto era preciso vir pelo lado de fora da casa. Um dia estávamos no quarto eu e meus primos, quando o mais novo deles arredou um pesado roupeiro e revelou por trás dele uma outra porta que não era usada comumente, mas como estava chovendo ele acessou o interior da casa através daquela porta “secreta”, aquilo me deixou muito impressionado também, até então eu só vira aquilo em filmes e estórias de gibis. Outra coisa que nos deixava muito felizes era o fato de um dos primos trabalhar como locutor e ter um programa na rádio local, sempre o escutávamos no rádio lá de casa. Um outro primo meu, este já falecido infelizmente, trabalhava vacinando rebanhos de gado e ia sempre em uma propriedade que meu pai teve, e por lá vacinava nossas vacas, juntamente com seus companheiros, um dia lhe perguntei se não tinha pena de cravar aquela agulha enorme nos animais e ele me respondeu:
_Até tenho, mas é para o bem deles. Ele me disse ainda trepado na cerca de um curral.
Foi nesse dia que compreendi a utilidade das vacinas, pois ele me explicou que evitava que acometessem doenças nos animais, assim como era feito nas pessoas pelos médicos. Outra vez esse mesmo primo, mais meu irmão e um veterinário e o meu pai, realizaram uma cesariana em uma vaca que ficou doente, salvaram o filhote, mas a vaca morreu. Era quase noite e a operação foi feita dentro de um mato, sob a luz de tochas de fogo, uma cena tão impressionante que até hoje sonho com ela.
Minha tia Iná era tão doce e bondosa, que eu acreditava naqueles dias que somente outra pessoa se comparava a ela, e era minha mãe sua irmã, que era de uma paciência e bondade que me emocionam até hoje quando penso nela. O marido de minha tia eu encontrava raramente, era um homem rude de mãos calejadas, sempre que apertava minha mão eu sabia que encontraria uma mão forte e dura, mas que era carinhosa e apertava a minha com suavidade, depois passava a mão em minha cabeça e sempre dizia:
_Como vai Chiquito? - Me olhando nos olhos com um olhar terno e carinhoso.
Depois que se aposentou tio Lulu como era conhecido passou a fazer alguns trabalhos artesanais, entre eles alguns canecos de PVC, ele mandou um para minha mãe, que está comigo até hoje. Certa vez fui levar comida para o meu tio, ele estava trabalhando em uma cerca perto de minha casa na cidade, em um campo nos arredores. Chegando lá estava ele e meu primo (o das vacinas), era meio dia e ele, meu primo estava em volta de um fogo de chão, fritando partes de galinha em uma enorme caçarola, exalando um cheiro muito bom no ar. Juntamos aquilo à comida de minha mãe que eu levara e fizemos um belo almoço. Naquele dia não fui à escola, pois passei o resto da tarde observando eles trabalharem nas cercas, quando cheguei em casa quase apanhei, foi por pouco mas recebi uma dura de minha mãe, que ficou brava comigo por uns quinze.....minutos. A minha tia mais velha, a que era namorada do Franke, certa vez passou alguns dias com minha família, quando moramos no interior, ela apareceu por lá com uma coisa que ainda não conhecíamos: um gravador com fita k7, nos mostrou a voz dos primos gravada e realizamos muitas gravações, até que as pilhas acabaram. Lembro de uma gravação em que o meu primo locutor cantava uma canção que fez para um sobrinho que era pouco mais novo que eu, uma paródia em que dizia assim:
_Murmura o mar a derramar uma canção, e o João Baptista até parece um leão.
E a gente escutava, voltava e escutava novamente dando muitas risadas, foi um tempo incrível aquele. Lembro também que fomos mergulhar em um arroio que tinha lá, depois de um mergulho minha prima querida retornou a superfície sem as sobrancelhas, elas eram de maquiagem, ou seja, pintadas. Aquilo também foi motivo de grandes risadas, minha prima é muito bem humorada e engraçada, mas um dias desses perguntei a ela sobre isso e ela mudou de assunto, não lembrou. Teve um caso que eu ouvia contar naqueles tempos, era que o meu primo, acho que o mais velho da família, muito simpático e amigo, teria um dia por motivo de trânsito  fugido da polícia em seu carro, e que se entrincheirou nas escadarias de seu prédio e teria ameaçado os policiais com um revolver. Não sei como isso terminou, mas acho que terminou bem, pois ele está vivo até hoje, sempre tive vontade de perguntar isso a ele, mas por vergonha nunca perguntei.
As memórias que ficam são aquelas que sempre cultivamos, seja por serem desagradáveis e impossíveis de esquecer ou por nos trazer de volta coisas boas e momentos bons que vivemos. Só tenho coisas boas e memórias deliciosas dos tempos da casa da tia Iná e de sua família, mesmo passado tantos anos, sempre tiro um tempinho para lembrar desse período incrível de nossas vidas e tenho certeza que nunca esqueceremos daqueles dias. Sempre que estou chateado ou triste, me refugio em meus pensamentos na casa da tia Iná.

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