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Generalidades com Especificidade

Generalidades com Especificidade

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Mulher de Fé


As mãos de minha mãe eram lindas. Longos e fortes dedos, de uma pessoa que trabalhou muito nas lides domésticas. Lembro de ficar horas e horas observando-a tricotando os quentes suéteres de sobras de lá que eram oriundas de outros suéteres que eram desmanchados, tinham as lãs lavadas, novamente enoveladas e então pacientemente tricotados nos intervalos das intermináveis labutas do lar. Ela tinha os quadris típicos das mulheres que pariram vários filhos, ela teve nove ao todo, e deve ter criado pelo menos um sobrinho. Todos os filhos cresceram fortes e sadios, e apesar dos pequenos desvios da mocidade, todos se tornaram pessoas decentes e trabalhadoras, sob a forte influência de sua rígida e ao mesmo tempo liberal educação. Uma das coisas que mais me encantavam em minha mãe era sua escrita, que apesar de ser de uma pessoa de pouca instrução, era firme e sem conter nenhum erro de linguagem. Tinha uma linha reta de escrita, e mesmo em um papel sem pauta as frases eram coesas e mantinham entre si bom espaçamento e tamanho de caracteres, em um tipo de letra emendada e muito pessoal. O “e” , “f”, “o”, e “b” capitulares sempre eram feitos iniciando-se em uma bonita linha filigranada, ou um tipo de arabesco de uma beleza e graça sem iguais.
Minha mãe nunca demonstrou alegria exuberante, nem ria com facilidade, a não ser quando da visita de amigas, que lhe eram caras, ou filhos, mas era bondosa, compreensiva e sempre disposta a ajudar os outros.
Nos anos que se seguiram a morte de meu irmão, juntamente com meu pai mergulhou em um profundo e longo período de luto que se seguiram até o raiar dos primeiros anos da década de oitenta, e mesmo nos anos vindouros ainda se mantinha fiel a esse luto, se recusando a participar de festas e a ouvir música em volume mais alto. Nossa casa nesses anos se caracterizava por um silencio respeitoso, que não incomodava propriamente, mas era de certa forma bastante estranho para quem observasse com atenção de fora. Quando da morte de meu pai, minha mãe já estava calejada com a vida e seu sentimento em relação a esse tipo de perda havia mudado um pouco, e sua fé em Deus havia crescido muito, pois apesar de não ser “carola” era muito religiosa no sentido espiritual da palavra. No final dos anos oitenta com a chegada dos primeiros netos, filhos de minha irmã e de meu próprio filho, ela já havia renascido e sua jovialidade driblaram até mesmo uns pinos que deve que colocar em um pé quebrado acidentalmente no banheiro. Viveu um boa vida, gozando de relativa saúde até 2007, quando uma internação provinda de uma isquemia a levou ao coma e a morte em poucos dias.
Poucos meses antes de adoecer, passamos uma linda tarde sob a sombra de uma árvore em frente de nossa casa, ouvindo música suave do harmonicista de Porto Alegre, Paulo Augusto. Foi uma linda tarde e nunca esquecerei a mulher que se fazia respeitar pelos filhos e por todos que a amavam e conheciam.. Minha mãe tinha muitos irmãos e irmãs, quase todos já falecidos, restam ainda dois. Mas todos a amavam e eram correspondidos, e não havia um só dia em que ela não os lembrava. Assim era minha mãe Dona Eni Vieira Barbosa Freitas.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

O Semeador



Uma das lembranças mais marcantes que trago ao longo de todos esses anos que vivo, é a de meu pai com uma caixa pendurada no pescoço, lançando ao ar sementes de arroz, que logo brotavam verdes e lindas para um dia se transformarem em belos e recheados cachos do cereal.
Eu era uma criança ainda, e um belo dia meu pai me convidou para irmos até um local, que eu sabia que era uma lavoura de arroz, e que recentemente havia sido arada e preparada para o plantio. Disso eu tinha noção, mas o que estava para acontecer eu não imaginava. E sentado eu fiquei, em uma saliencia de uma valeta de irrigação e me distrai com pássaros e outros animais silvestres que haviam por ali, enquanto meu pai mexia em umas sacas e ferramentas que ele trouxe conosco. Soprava uma leve e gostosa briza, e o cheiro no ar era de terra, da fértil terra de Santa Vitória do Palmar. De repente ouvi um fargalhar diferente, os pássaros se assustaram, virei a cabeça e então vi meu pai, com um largo sorriso e com longos e cadenciados passos, como numa marcha ágil, com o caixote no pescoço sustentado por uma corda envolta em uma proteção de pano. Ele colhia dentro do recipiente com uma das mãos um punhado de grãos e o lançava enérgicamente para frente e para o alto, com seus fortes braços, com movimentos ritimados. Fazia isso com as duas mãos intercalando os movimentos.
Naquele dia entendi melhor quem era meu pai, cresci como ser humano mais um degrau e aquela imagem até hoje me emociona, pois sempre foi assim que vi meu pai a partir de então. E tenho certeza de que ele foi isso para todos nós: Um semeador.



Dedicado à João de Souza Freitas, meu pai.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

O meu amigo Chico Barbosa


No final dos anos sessenta minha família morava em um sítio no interior do estado, e logo que chegamos ao local já fiz vários amiguinhos. Tanto no colégio rural que fazia o primário, quanto nas festas e reuniões de famílias tão comuns naquela época. Um de meus melhores amigos, talvez o melhor era um tocaio: Chico, um carinha muito magro e esquisito, mas dotado de muita inteligencia e bondade. Era muito quieto e pouco conversava com os outros, mas desenvolvemos um empatia mútua que conduziu toda nossa amizade durante os anos que convivemos. Chico tinha muitos brinquedos que eram feitos por seus dois cunhados (ele tinha duas irmâs muito bonitas) que eram exímios marceneiros, e desenvolviam e construiam para ele belos tratores, reboques e outras ferramentas agrícolas, que usávamos sempre em nossas brincadeiras que duravam um dia inteiro, nas longas tardes de verão que passávamos juntos. Nos dias de inverno que são mais curtos, eu ficava até os últimos raios de sol, e somente quando o sol já entrava no horizonte por trás das belas coxilhas eu ia para casa. Pequeno que era nos meus sete anos, com corajem enfrentava a viagem de volta, de cerca de quatro kilometros, por entre banhados e matagais, cortando atalhos, numa jornada inimaginável para um menino de hoje.
Havia na região um homem que desenvolvia máquinas e ferramentas, e que tinha um trator muito velho sempre atrelado a uma não menos velha trilhadeira, e que oferecia seus serviços aos pequenos agricultores que não dispunham de máquinas para suas colheitas. O trator desse homem, Otacílio Tech era seu nome, era o folclore da gurizada da época. Um velho Case 1938, de rodas de ferro e todo enferrujado, que andava muito vagarosamente cortando as estradas de chão e espantando os animais pelas longas jornadas que fazia pelas serras e planícies do lugar. Esse trator de Otacílio deixava um rastro bastante peculiar por onde passava, as rodas de trás do trator eram maiores que as da frente como de costume nessas máquinas, e deixava linhas perpendiculares paralelas no chão, o que era bastante curioso, pois não tinha pneus de borracha. Um dia Chico e eu num final de tarde, quase noite íamos e direção a um lago na frente de sua casa numa baixada para cavarmos algum valo de brincadeira, e Chico começou a fazer sulcos no chão com a pá, semelhante aos que as rodas de trator de Tech deixava no chão, fazia isso e dávamos risadas da semelhança. Ma num descuido de criança, Chico cravou a afiada pá em seu dedão esquerdo, decepando-o, e deixando pendurada a falange desse dedo. Sem chorar mas gritando ele dizia: Socorro atorei o dedo! Apavorado chamei seus pais que o acudiram e o levaram para dentro de casa para tratar o ferimento. Chico foi ao médico tratou e curou o dedo,. ficando sem a falange, o que nunca o atrapalhou em nada. Visitei-o várias vezes quando convalescia, brincamos muito depois disso, mas no início dos anos setenta nos mudamos para outra cidade e nunca mais vi esse querido amigo de infância. Espero que esteja bem, lhe mando um abraço forte, onde quer que esteja, pois hoje amanheci pensando nele.